Por Adriano dos Santos

Resumo

O objetivo desse trabalho é contextualizar a maconha na trajetória do Brasil, analisar como foi construído no imaginário da população a sua representação como algo associado ao negro e à camada pobre da sociedade, como a partir dos discursos médicos fora associado à criminalidade e ao ócio, como uma forma de dominação social embasada em teorias que tratava a cultura negra como algo que deveria ser esquecida e superada. Analisar como esse processo de demonização da cannabis levou às medidas de proibição no decorrer das primeiras décadas do século XX até sua criminalização na década de 30, e quais foram as consequências desta criminalização no grupo social que era adepto ao canabismo, visto por alguns recortes de jornais. 

Introdução

O presente trabalho vai abordar como foi construído o conceito médico em relação ao uso da maconha no início do século XX, analisando o contexto histórico e como a maconha foi relacionada ao ócio e à criminalidade até chegar a sua total criminalização na década de 1930, no Brasil. Analisaremos como os médicos associavam a maconha a um vício de negros, classe subalterna e que degenera o homem, menosprezando o seu consumo e associando-o a pontos negativos da sociedade como a marginalidade e a vagabundagem. Dois médicos importantes que defenderam e prosperaram essas ideias foram Rodrigues Dória e Francisco Iglesias. Este trabalho busca entender como essa proibição do consumo da maconha, seja para uso medicinal, ritualístico ou recreativo, afetou a população menos abastada e a levou à marginalização perante a sociedade.

O presente artigo também tem como objetivo verificar se realmente os médicos, com suas pesquisas sobre a maconha, tinham um real projeto de melhoramento para a sociedade, ou se esses estudos eram somente uma forma da medicina se ligar às politicas públicas de saneamento e ajudar no controle populacional das minorias, além de punir aqueles que não se enquadravam na sociedade capitalista que se fortalecia no país.

Ademais, tem como proposta analisar as escritas médicas da época e leis que foram criadas para controle do consumo da erva até a sua criminalização na década de 30 – nesse período, foi proibido, em âmbito nacional, o consumo, a posse e venda da maconha. Além de verificar quais grupos foram os mais afetados com a coibição desde os primeiros discursos médicos até a criminalização com base na historiografia e algumas publicações em jornais.

Conceito de Raça e Droga

Em meados do século XIX o conceito de raça migrou das ciências naturais e alcançou as ciências sociais e humanas. Com a publicação da obra de Charles Darwin, em 1859, e o desenvolvimento da teoria evolucionista a partir daí, o racialismo ganhou novas perspectivas, com o chamado darwinismo social, que lastreada na teoria da evolução e na seleção natural afirmava não só a diferença de raças humanas, mas a superioridade de umas sobre as outras e, ainda, que a tendência das raças superiores era submeter e substituir as outras. A partir da Frenologia e do darwinismo social (muitas vezes chamado de spencerismo, pois a transposição dos argumentos darwinistas para o campo do social não se deveu ao próprio Darwin, mas a Spencer), desenvolveu-se a eugenia, que enaltecia a pureza das raças, a existência de raças superiores

desacreditava a miscigenação. Tais teorias foram a base científica do racismo.  (SILVA, 2006, p.2).

O início do século XX é marcado por essa base teórica que vai salientar que existe uma raça superior, a raça branca, e que ela pode submeter às inferiores a um projeto de civilização de trazer luz a uma raça inferior, a raça negra. Esta teoria sofre uma modificação quando passa da questão biológica e toma um viés cultural, que comprova o atraso do Brasil. A raça negra, em resumo, era uma doença que precisava ser curada. Porém, tomando o viés cultural, não é mais a raça a representação do atraso do país, e sim seus hábitos culturais. A herança que os escravos deixaram ao país é uma mancha na história. É nesse processo que a maconha se associa ao atraso. Historicamente, ela está ligada à cultura negra e aos grupos subalternos. Os adeptos do cannabismo que fazem parte desses grupos são subjugados e vistos como pessoas sem personalidade e moral, até que chegam a um ponto que passam a ser criminosos.

A palavra “droga”, segundo Henrique Carneiro, é um derivado do termo holandês droog, usado para produtos secos e substâncias naturais utilizadas, principalmente, na alimentação e na medicina. Existem três grandes ciclos em torno do tráfico de drogas:

O primeiro seria o das especiarias, no século XVI; o segundo, marcando a formação do sistema colonial, a partir do século XVII, estaria baseado na produção e no comércio do açúcar, da aguardente e do tabaco; e o terceiro ciclo, desenvolvido especialmente a partir do século XVIII, seria composto pelas bebidas quentes e excitantes, como o café e o chá. (CARNEIRO, 2004,p.1).

Lembrando que até a criminalização, a maconha não tinha uma conotação de produto ilícito; houve medidas de proibição desde 1830 na capital do Rio de Janeiro, mas pouco foram respeitadas. O uso da maconha passa a ter um caráter de crime a partir da década de 30. Anteriormente, até pelo menos 1926, era considerada uma droga estimulante e psicoativa, vendida em herbários como remédios para diversas doenças, tendo inclusive plantações em todo território nacional para uso próprio ou para venda do excedente. A partir dos investimentos médicos ligando a maconha a crimes e atitudes imorais, vai se construindo no imaginário das pessoas ao longo das primeiras décadas do século XX como um grande malefício, como um agente causador dos problemas sociais que afetam o desenvolvimento e o crescimento do país, chegando assim na sua total criminalização que pendura até os dias de hoje.

 Breve história da maconha no Brasil

Por ser considerada de escravos, trazida pelos negros a partir da segunda metade do século XVI, a maconha nunca gozou de prestígio no Brasil. Apesar disso, há controvérsia sobre o aparecimento da maconha ao Brasil. Há estudos que os marinheiros, descobrindo a erva em suas aventuras pela Índia, se tornaram adeptos e a trouxeram para terras brasileiras. Mas sempre foi perpetuado que a maconha é objeto de grupos subalternos da sociedade. Como os negros faziam o uso em sua terra natal, conseguiram trazer um pouco dessa cultura canabista e enraizar seu uso no novo continente. Segundo Jean Marcel França, a Coroa Portuguesa no século XVIII moveu mundos e fundos para conseguirem sementes da cannabis para semear no sul da Colônia.

E também os constante e sempre infrutíferos incentivos do governo joanino e imperial para que agricultores mineiros, cariocas e paulistas plantassem cânhamo em suas propriedades, de modo a atender minimamente às necessidades da indústria naval. (FRANÇA,2015,p.35)

Como observado, o plantio de cânhamo interessava à Coroa para a fabricação de cordas e velas para abastecer a indústria naval. A real feitoria do cânhamo não foi bem sucedida, e após a Proclamação da Independência, em 1822, parece ter morrido o interesse pela plantação do cânhamo. Dessa maneira, foi esquecido todo o empenho da Coroa na implantação da planta, e mais uma vez ela foi somente associada a uma droga trazida pelos escravos.

Após a abolição da escravatura em 1888, e a Proclamação da República, em 1889, a maconha começa a ser um empecilho para o novo regime.

A cannabis era conhecida por diversos nomes desde o Brasil Colônia, a maior parte deles africanos, como: pango, diamba, liamba, fumo de Angola. O cannabis, como era chamada no Brasil, é um anagrama da palavra cânhamo.

Discurso Médico

Com o novo regime implantado, a República, tudo que era considerado atrasado e  retrogrado, precisava ser renovado. O Brasil tinha que perder seus laços com o passado e chegar à modernidade, e para isso seria necessário certo esquecimento do regime escravocrata e da herança cultural que esse povo trouxe consigo. No entanto, não mais seria permitido e tolerado acabar com o negro com o uso da violência física e direta. A partir disso, como diz Martins, surge a necessidade de explicações com embasamento cientifico. A teoria das raças, que surge na Europa no século XIX, acredita que o progresso estaria ligado a uma raça pura, e a evolução não seria um fator obrigatório a todos os humanos. Resumidamente, a evolução estava ligada à pureza da raça, que seria a branca e europeia. Essa bagagem teórica racialista que já se encontrava em declínio na Europa no final do século XIX, foi usada nos primeiros anos do Brasil República. O atraso do país era contíguo aos negros, e evidentemente que essa raça era um empecilho para o desenvolvimento, como diz Lilia Schwarcz e Heloisa Starling “Segundo a visão da época, a explicação para a falta de sucesso profissional ou social dos negros e mestiços estaria na biologia; ou melhor, na raça, e não numa história pregressa ou no passado imediato”(2015,p.343). Assim, era necessário que o estado interviesse com um controle social e político sobre essas pessoas. Um projeto de branqueamento da população brasileira, majoritariamente negra, se iniciou. Nesse contexto se intensifica a chegada de imigrantes no país, que tinha como objetivo além de trazer mão de obra às indústrias nascentes, a proposta o branqueamento da população. A intenção era que com o decorrer do tempo, a raça chegasse a ser pura, e portanto branca.

A imigração era tida pelas elites nacionais como prioritária para o desenvolvimento do Brasil, afinal, traria para o país um grande contingente de indivíduos considerados de raça pura e superior. Contudo, a “importação” de trabalhadores europeus não foi a única iniciativa do Estado para fazer do Brasil um país branco. A eliminação física do negro não seria suficiente para negar o passado escravocrata, tampouco apagaria a “mácula” da origem mestiça. Para além de uma perspectiva futura de embranquecimento, impunha-se a necessidade de tornar “invisível” a participação do negro na História nacional. (MARTINS, 2012, p.275-276)

Na primeira década do século XX essa teoria sofre uma alteração, que sai do viés biológico racial, e passa a associar o atraso do brasileiro a dimensão cultural e social, a herança nefasta que o negro deixou. Os que não se enquadravam no sistema capitalista industrial eram considerados vagabundos. O estado que não mais escraviza o negro, agora o deixa a margem da sociedade e desqualifica sua cultura para mascarar os problemas sociais. Nesse contexto a demonização da maconha se intensifica e se expande em território nacional.

Em 13 de maio de 1888, por entre alegrias e festas, foi promulgada a lei que aboliu a escravidão no Brasil e integrada a nacionalidade com os libertados, tornados cidadãos; mas no país já estavam inoculados vários prejuízos e males da execrável instituição, difíceis de exterminar. Dentre esses males que acompanharam a raça subjugada, e como um castigo pela usurpação do que mais precioso tem o homem – a sua liberdade – nos ficou o vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo d’Angola, maconha e diamba, e ainda, por corrupção, liamba, ou riamba. (DÓRIA,1915, p.1-2)

Discursos médicos começaram associar o vício da maconha à criminalidade, à vagabundagem, ao ócio, e consequentemente aos grupos menos abastados. Rodrigues Dória e Francisco Iglesias foram os grandes incentivadores desta base teórica e fizeram várias publicações no Brasil e no Exterior em prol dessa ideia. Rodrigues Dória argumentava que o vício da maconha produzia estragos individuais e daria lugar para graves consequências criminosas.

Os índios amansados aprenderam a usar da maconha, vício a que s entregam com paixão, como fazem a outros vícios, como o do álcool, tornando-se hábito inveterado. Fumam também os mestiços, e é nas camadas mais baixas que predomina o seu uso, pouco ou quase nada conhecido na parte mais educada e civilizada da sociedade Brasileira. (DÓRIA, 1915, p.2)

No Brasil início do século XX era visível seu atraso perante os países industriais europeus e os Estados Unidos. Foi constado que a falta de interesse da elite sobre os mais pobres os deixavam abandonados e com péssimas condições de vida. A Liga Pró-Saneamento diagnosticava o Brasil por volta de 1912 como um grande sertão e um vasto hospital, que necessitava ser remediado e curado. Novos projetos de saneamento devem ser instaurados para a recuperação da nação.

O diagnóstico de um povo doente significava que, em lugar da resignação, da condenação ao atraso eterno, seria possível recuperá-lo através de ações de higiene e saneamento, fundadas no conhecimento médico e implementadas pelas autoridades públicas. Não bastava ter encontrado este “povo que ainda há de vir”, era urgente transformar esses “estranhos habitantes” do Brasil em brasileiros. (HOCHMAN, 1998, p.218)

A primeira associação feita por Rodrigues Dória em 1915 ligava a maconha exclusivamente aos setores populares. Na concepção de Dória, o grupo de pessoas de que usava a maconha era de poucos recursos financeiros, e em sua grande maioria era formado por analfabetos e trabalhadores rurais. Para ele, a erva gerava grandes estragos aos usuários, inclusive os levava a cometerem grandes crimes. Como Rodrigues Dória, Francisco Iglesias foi um difusor dessa ideia da ligação do negro com a maconha e a criminalidade.

Os fumantes reúnem-se, de preferência, na casa do mais velho, ou do que, por qualquer circunstância, exerce influências sobre eles, formando uma espécie de clube, onde, geralmente, aos sábados, celebram a suas sessões.

Colocam-se em torno de uma mesa e começam a sugar as primeiras baforadas de fumaça da cannabis sativa.

Depois de alguns minutos, os efeitos começam a fazer-se sentir.

O indivíduo apresenta os olhos vermelhos. Os músculos da face se contraem, dando ao rosto expressão de alegria ou dor; a embriaguez não tarda e com ela o cortejo dos seus vassalos; os delírio aparece agradável, dando bem-estar, trazendo à mente coisas agradáveis, vai aumentando, até a loucura furiosa que toma diversas modalidades, segundo o temperamento de cada indivíduo.

Uns ficam em estado de coma, em completa prostação; os outros são para cantar, correr, gritar; outros ficam furiosos, querem agredir, tornam-se perigosos.

Os fumadores, depois de curtirem a embriaguez, voltam ao estado normal. Isto no começo do vício. Quando o indivíduo é um diambista habitual, mesmo depois da embriaguez, tem aspecto e modos de idiota; é um homem a margem.

O alcoolista, geralmente, não quer ser tudo como tal; mas não faz muita questão de beber álcool em plena sociedade; mas o diambista, não; esconde o seu vicio, vai fumar às escondidas, não quer que saiba, nega-o sempre que é interpelado, a não ser que seja um diambista inveterado, que o idiotismo esteja apontando, implacavelmente para o seu miserável vulto: este é o fumados de diamba. (IGLÉSIAS, 1958, p.18).

Proibição

Com esse referencial teórico, chamado medicina social, Thiago Rodrigues diz que “a difusão no debate sobre a repressão na fabricação, no comércio e no uso de substâncias psicoativas saía, nesse momento, da esfera civil e era encampada pelo aparato burocrático-sanitário estatal”(2004,p.93). O controle de medicamentos e substâncias psicoativas, nesse momento, teria a fiscalização e o controle do estado, que poderia a partir de então, interferir legalmente no comércio de medicamentos legais. A lei que trata do controle de medicamentos é datada de 14 de julho de 1921. A lei federal n. 4.294 é rígida no controle da venda de medicamentos, com punições a quem vender doses acima das receitadas. Havia agora uma maior repressão e controle da venda. Substâncias tidas como entorpecentes, caso dos derivados da maconha, da cocaína, do ópio e de outros medicamentos, somente eram aceitas para uso medicinal.

Com a lei de 1921, o vendedor ilegal foi criminalizado, com penas de restrição da liberdade, perda da autorização para exercer sua profissão quando médico, dentista ou enfermeiro. Para o usuário não havia criminalização, pois ele era considerado um doente, não criminoso, como diz Thiago Rodrigues (2004,p.136), que não considera “o usuário nem criminoso nem louco, mas doente, passando por medida médico-legal, necessária uma avaliação de um médico competente”. Contrariando Rodrigues, Dória e outros proibicionistas acreditavam que a lei devia punir os usuários. O esforço dessas pessoas era uma luta árdua conta a maconha.

Em 1924, Pernambuco Filho e Adalto Botelho escrevem um livro intitulado “Vícios sociais elegantes”, que tratava do uso da cocaína, da cannabis, do ether, do ópio e seus derivados, do crescente consumo em alguns estados do nordeste e a necessidade da intervenção das autoridades. França (2015, p.62) relata que esses doutores, em 1925, participaram de uma Conferência Internacional do Ópio, em Genebra, com a presença de participantes de mais de cem países, que tinha o intuito de criar tratados proibicionistas sobre a cocaína e o ópio. Esses tratados vinham sendo discutidos desde 1909.

Os egípcios, denunciando que havia uma epidemia do uso da cannabis em seu país, pediram a inclusão da erva na lista de substâncias proibidas e apresentaram um estudo sobre os perigos sociais da cannabis e a necessidade de controlar a circulação internacional. O estudo recebeu apoio de vários países e foi criada uma subcomissão com especialistas da Grã-Bretanha, Índia, França, Grécia, Egito e Brasil para estudar o pedido. Essa subcomissão chega a uma conclusão:

O uso de Canhâmo indiano e dos preparados dele derivados só pode ser autorizado para fins médicos e científicos. Resinas não tratadas (charas), no entanto, extraídas das flores das plantas do sexo feminino da Cannabis Sativa, do mesmo modo que as diversas preparações de que constitui a base (haxixe, chira, esrar, diamba etc.), não sendo atualmente utilizadas para fins médicos e só sendo suscetíveis de utilização para fins nocivos […], não podem, em hipótese alguma, ser produzidas, vendidas, comercializadas etc. (FRANÇA,2015,p.63)

Em 1925, na Conferência Internacional do Ópio, graças a um esforço tremendo vindo do Egito e endossado por vários países, inclusive o Brasil, a maconha é colocada no rol de drogas pesadas que precisam e necessitam ser reprimidas e controladas pelo estado. Seu uso é aconselhado apenas em alguns casos para uso medicinal.

Uma matéria do jornal Estado de São Paulo de 4 de dezembro de 1929 na página 9, intitulada, “Vendedor de tóxico”, diz sobre a apreensão de um homem pela delegacia de Costumes e Jogos em São Paulo na praça da Sé, 63, que o infrator com nome de Diomero de Oliveira, proprietário da Hervanaria Botanica-Oriental, foi preso em flagrante quando tentava vender meio quilo de cânhamo por 100$. A matéria diz ainda que ele tinha vários clientes viciados, e no local vendia punhados de sementes da planta. No início da matéria, a maconha é explicada como um veneno mais violento do que o ópio. Depois da Lei federal n. 4.294, os estabelecimentos que fornecessem o cânhamo sem prescrição médica ou em quantidades maiores que a receitada, os infratores seriam processados, como aconteceu com Diomero.

Já outra matéria, veiculada no dia 4 de janeiro de 1930, apresenta relatos de Gastão Cruls, intitulada “A Amazônia que eu vi”. A reportagem discorre sobre a experiência de Gastão ao comprar uma amostra do “fumo de angola”, a maconha, a título de curiosidade. Ele afirma que a erva é a cocaína do caboclo, e diz ainda que o efeito leva o usuário a abrir seus olhos “a uma fantasmagoria de sonhos irrealizáveis”. Afirma que o cânhamo foi trazido pelos escravos e que era muito enraizado nas populações africanas. Deste modo, apresenta um quadro que nos remete aos escritos de Rodrigues Doria, que até mesmo é citado na matéria como autor de interessantes trabalhos. Escritos esses que associavam o uso da erva aos negros, a vagabundagem e ao atraso do país. Gastão ainda fala que o consumo da erva está mais enraizado no nordeste do país, e após adquirir a maconha ele questiona o vendedor sobre seus efeitos. É respondido: “ um bom cigarro desse fumo faz a pessoa ficar falista”(1930,p.4).

Apesar do aparato repressivo da lei de 1921, como é possível verificar nas matérias, a maconha ainda era vendida sem a necessidade de uma prescrição médica. Ela continuava sendo comercializada normalmente, com o laço cultural que vinha enraizado no seu consumo, tido para alguns como a expansão da mente, para outros como relaxante recreativo. Antes da lei de 1921 a maconha também era tida como um remédio natural, pois atuava contra várias doenças.

Apesar dos esforços na Conferência Internacional do Ópio de 1925, que visava uma repressão maior, a lei no Brasil demora um pouco a ser decretada, sendo sancionada apenas em 11 de Janeiro de 1932, o Decreto N° 20.930.

O decreto contém cinco capítulos, que vão distinguir e enquadrar as substâncias na lei, especificar quais sansões para os contraventores e dar aparato legal ao estado no controle das substâncias. O primeiro artigo apresenta as substâncias:

Art. 1º São consideradas substâncias tóxicas de natureza analgésica ou entorpecente, para os efeitos deste decreto e mais leis aplicáveis, as seguintes substâncias e seus sais, congêneres, compostos e derivados, inclusive especialidades farmacêuticas correlatas:

I – O ópio bruto e medicinal.
II – A morfina.
III – A diacetilmorfina ou heroína.
IV – A benzoilmorfina.
V – A dilandide.
VI – A dicodide.
VII – A eucodal.
VIII – As folhas de coca.
IX – A cocaína bruta.
X – A cocaína.
XI – A ecgonina.
XII – A “canabis indica”. (BRASIL, 1932)

A maconha agora é restrita, e seu uso medicinal aplicado apenas a poucos casos, casos esses que necessitam de receita e autorização do estado. O usuário que consumia a erva de maneira recreativa ou ritualística não mais pode fazer estas práticas. Sua herança cultural fora reprimida. E o usuário que era encontrado portando a substância sem a devida autorização ou uma quantidade maior que a prescrita era sujeito à prisão e multa, como diz o artigo 25 do decreto:

Vender, ministrar, dar, trocar, ceder, ou, de qualquer modo, proporcionar substâncias entorpecentes; propor-se a qualquer desses atos sem as formalidades prescritas no presente decreto; induzir, ou instigar, por atos ou por palavras, o uso de quaisquer dessas substâncias.

Penas: De um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$0 a 5:000$0. (BRASIL, 1932)

Pela primeira vez o usuário passa a responder criminalmente, e não mais apenas o vendedor. A pena pode ser substituída por internação obrigatória ou facultativa, para casos quando o usuário for toxicômano ou intoxicado habitual. Essas circunstâncias eram determinadas pelo juiz.

Dois dias após a promulgação da lei, o jornal o Estado de São Paulo, no dia 13 de janeiro de 1932, apresenta a seus leitores uma matéria intitulada, “Decretos assinados pelo chefe do governo provisório”, que na ocasião era Getúlio Vargas, em que passa um apanhado geral do decreto n°20.930. A matéria apresenta os entorpecentes enquadrados na lei, a fiscalização ao exercício da profissão da medicina, da odontologia, da medicina veterinária e das profissões de farmacêutico, enfermeira e parteira no Brasil, as penas para os contraventores, mas nada fala sobre os usuários e as penas previstas para os criminosos.

Com esse aparato legal, a criminalização dos usuários foi lançada. Mas apesar dessa luta e esforço contra a cannabis é possível ver o tamanho do enraizamento cultural da planta na população em uma matéria de 10 de julho de 1937. Nela é feito um resumo do livro “Nordeste”, de Gilberto Freyre. Em um parágrafo, ele trata do plantio da maconha e do tabaco na Bahia, e diz que a cultura dessas plantas é dada no período entre safras e relacionada ao ócio “cultura de entorpecentes de gozo”, diz ainda que esses prazeres e sensações de luxúria são do tabaco para senhores e da maconha para os trabalhadores e negros. Com essa matéria fica claro que ainda, após a criminalização dos usuários e do comércio da planta, o plantio acontece. O laço cultural é bastante enraizado na cultura negra.

Como fica perceptível que o consumo e o plantio ainda permanecem, dia 25 de Novembro de 1938, Getúlio Vargas aumenta ainda mais a repressão contra os entorpecentes com o Decreto-lei n° 891. No seu primeiro capítulo classifica os entorpecentes, e a maconha é citada na décima sexta posição como substância. O decreto a descrimina e divide as variedades como: – O cânhamo cannabis sativa (maconha, meconha, diamba, liamba e outras denominações vulgares) e variedade indica que fica proibido o plantio, o cultivo e a exploração da planta por particulares em território nacional. No capítulo dois, menciona que as plantas já existentes, devem:

  • 1º As plantas dessa natureza, nativas ou cultivadas, existentes no território nacional, serão destruídos pelas autoridades policiais, sob a direção técnica de representantes do Ministério da Agricultura, cumprindo a essas autoridades dar conhecimento imediato do fato à Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes. (BRASIL, 1938)

Como no Decreto 1932, o de 1938 também diz que a toxicomania ou a intoxicação habitual pode ser tratada como doença, e o acusado ser passivo de internação, seja facultativa ou obrigatória, como o juiz determinar. Mas o usuário que o juiz não considerar a internação fica cabível a prisão como descreve no artigo 33 da lei.

Facilitar, instigar por atos ou por palavras, a aquisição, uso, emprego ou aplicação de qualquer substância entorpecente, ou, sem as formalidades prescritas nesta lei, vender, ministrar, dar, deter, guardar, transportar, enviar, trocar, sonegar, consumir substâncias compreendidas no art. 1º ou plantar, cultivar, colher as plantas mencionadas no art. 2º, ou de qualquer modo proporcionar a aquisição, uso ou aplicação dessas substâncias – penas: um a cinco anos de prisão celular e multa de 1:000$000 a 5:000$000. (BRASIL, 1938)

É notório que não existe uma distinção clara na lei de quem é considerado usuário ou vendedor, de quem se enquadra na prisão ou internação. Essas decisões ficam a critério do juiz. Para famílias que possuem uma renda alta, é possível a contratação de um advogado e com mais facilidade reverter a pena. Já quem não possui tal condição, fica a mercê da justiça, sendo facilmente considerado “vagabundo”. Essa foi a maneira que a sociedade criou para encarcerar e punir as pessoas que não se encaixam nos padrões. É o uso da lei como forma de legitimação e higienização da sociedade.

Considerações finais

A criminalização da cannabis se intensifica após 1915 com os escritos de Rodrigues Dória. Seu principal ponto é o controle da sociedade, o controle dos costumes negros e das pessoas de baixa renda, em que se associa o uso da maconha ao ócio e a vagabundagem. Para ele essas características não poderiam mais existir perante o sistema capitalista que se fortalecia no Brasil. Sua literatura foi uma maneira de higienização da sociedade e de costumes. Como é perceptível, as leis de criminalização da planta intensificaram-se após 1921, período que a repressão é somente para o revendedores da erva, que na época era considerada medicinal. A partir de então começa ter um caráter perigoso, e passa a ser a cocaína do caboclo, o veneno africano. Com a repressão somente nos pontos de vendas da cannabis medicinal não houve o efeito esperado. Em 1932, com o decreto n° 20.930, o usuário também passa a ser alvo criminoso. A lei como controle social quer apagar costumes e tradições. Os recortes de jornais apresentados mostram que apesar de todos os esforços, o plantio e a venda da maconha ainda permanecia, principalmente na região do norte do país, pois era um costume enraizado na cultural popular. Seu uso era tido como remédio, um relaxante, uma porta para o imaginário. Para tentar frear ainda mais o consumo, em 1938 temos o decreto-lei n° 891, em que se intensifica ainda mais o aparato repressivo.

A criminalização do uso e comércio cannabis foi aparato legal para reprimir um povo e um costume. Não foi relevante a tradição dessa parte da população, e ela foi tida somente como uma herança nefasta que o povo africano por castigo deixou no Brasil. Essa proibição ainda permanece, e os traços ainda são muito parecidos, pois os mais punidos pertencem às camadas pobres da sociedade. Afinal, é possível se questionar ainda hoje sobre os efeitos que a proibição de uma lei causam na sociedade.

Documentos:

O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 4 de dezembro de 1929, p.9.

O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 4 de janeiro de 1930, p.4.

O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 13 de janeiro de 1932, p.2.

O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo, 10 de julho de 1937, p.3.

BRASIL. Decreto nº 4.294, de 6 de julho de 1921. Estabelece penalidades para os contraventores na venda de cocaina, opio, morphina e seus derivados; crêa um estabelecimento especial para internação dos intoxicados pelo alcool ou substancias venenosas; estabelece as fórmas de processo e julgamento e manda abrir os creditos necessarios. 6 de julho de 1921.

BRASIL. Decreto nº 20.930, de 11 de janeiro de 1932. Fiscaliza o emprego e o comércio das substâncias tóxicas entorpecentes, regula a sua entrada no país de acordo com a solicitação do comité central permanente do opio da liga das nações, e estabele penas. 11 de janeiro de 1932.

BRASIL. Decreto-lei nº 891, de 25 de novembro de 1938. Aprova a Lei de Fiscalização de Entorpecentes.25 de Novembro de 1938.

 

Referências

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