Conto Canábico: sobre maconha nos tempos da quarentena

Conto Canábico: sobre maconha nos tempos da quarentena

A velha subiu a rua reclamando, enquanto a água suja corria e manchava o piso, deixando lisas as pedras brancas. E a velha me abordou de surpresa, com sua voz de velha portuguesa, enquanto eu matava tempo no meio-fio. Perguntou de onde vinha a água e eu respondi que estavam limpando as escadas de algum prédio. A velha se incomodou, e falou que era um perigo lavarem as escadas, pois alguém poderia escorregar. Perguntei se ela morava no prédio em questão e ela respondeu que não, mas que achava necessário fazer a observação.

“Uma pena tudo isso” me disse a velha quando achei que nada mais ela tinha para falar. “O que é uma pena, minha senhora?” perguntei um tanto incomodado, pois não queria gastar a língua à toa. “A doença tá mal, tá tudo mal, isso é triste, ver a Itália na doença é triste” disse a velha como quem lamentava por um mundo inteiro. “Aqui em Lisboa também está muito mal. Se a polícia me vê livre pela rua ela logo trata de me levar de volta para casa”.

E eu que estava ali só esperando o amigo chegar com o boldo, me vi em uma realidade alternativa. A pandemia de Corona deixou todo mundo na nóia, pois todo mundo agora é alvo do vírus em questão. Não pode sair na rua, pois o vírus está a solto por aí, e se você é idoso, você é isca fácil do malandro. E com o estado de emergência de Portugal, velha que passeia pelo bairro, como se nada estivesse a passar, pode ser levada pela polícia por desobediência civil.

Rapaz, chegamos ao ponto mais fundo, onde, por causa de um vírus, uma idosa é considerada mais subversiva que um maconheiro esperando seu corre. Com essa mudança de pensamento, disse para a velha ir para casa, pois “viagem em carro de polícia não vale a pena, pois os caras tem mal gosto musical”. Mas a velha disse que estava na rua à procura de um homenzinho, e disse que só voltaria para casa quando achasse o homenzinho.

Então o amigo apareceu com o boldo, e a velha o abordou e perguntou se ele tinha visto um homenzinho por aí. Ele disse que não para a velha e depois perguntou de onde estava vindo a água que corria pela calçada. “Estão limpando as escadas de um prédio. Um perigo isso” disse a idosa. Olhei para o amigo e disse para irmos embora dali, pois pode pegar mal dois maconheiros serem vistos com uma idosa. E assim começamos a marchar de volta para Arroios, como duas pessoas comuns que só saíram de casa para comprar um produto de  necessidade básica.

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Por Francisco Mateus
Ativista, escritor e jornalista

Conto Canábico: o testemunho de Ezequiel

Conto Canábico: o testemunho de Ezequiel

Ezequiel acordou de madrugada com um anjo em seu quarto que dizia se chamar Gabriel. Ainda desorientado pelo sono, Ezequiel perguntou ao anjo o que ele queria. Com a fala firme, anjo Gabriel disse que queria sair na mão com Ezequiel, mas não explicou o motivo. Não acreditando na intimação, Ezequiel, um pouco assustado, disse que os dois poderiam resolver o assunto que fosse por meio de uma boa conversa. Anjo Gabriel disse que não, que queria mesmo moer na porrada a criatura mortal.

Sabendo que não iria se garantir na briga, Ezequiel tratou de acender um baseado para pensar melhor na questão. Logo a fumaça tomou conta do quarto, e Anjo Gabriel se viu consumido pelo efeito da maconha. Vendo que os olhos do anjo estavam semicerrados por causa da marofa, Ezequiel decidiu passar o baseado para Gabriel, a fim de fazê-lo esquecer de vez da ideia da briga. Não deu outra. Anjo Gabriel se entregou à santa erva, e percebeu que é possível atingir as nuvens sem deixar a terra.

Anjo Gabriel tomou gosto pela vida no plano terreno. Mas quando Ezequiel se deu conta que o anjo estava há três semanas morando em sua casa e comprando drogas com seu dinheiro, é que percebeu que precisava se livrar da criatura angelical, que àquela altura, passava os dias fumando e bebendo sem se importar com nada.

Então, certo dia, ao chegar em casa do trabalho, Ezequiel encontrou Anjo Gabriel se picando no sofá da sala. A cena enfureceu Ezequiel, que achou que seu apartamento estava virando um ponto de viciado. Maconha beleza, mas heroína só na puta que pariu. O anjo, que estava chapado, se assustou com os gritos de Ezequiel, e percebeu que o motivo de sua exaltação era sério quando começou a levar socos do mortal.

Mesmo sem jeito, Ezequiel conseguia dar bons murros na cara do anjo, que em contrapartida não conseguia acertar um soco no mortal. Assim que sentiu que tinha perdido a briga, Anjo Gabriel, no chão e com os olhos cheios de lágrimas, pediu perdão a Ezequiel e falou que ia embora. Ezequiel parou de espancar o anjo, que desnorteado, atravessou a sala, esbarrando em móveis e garrafas vazias, chegou até a janela principal do apartamento e jogou seu corpo para fora, para então sair voando feito uma pomba bêbada.

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Por Francisco Mateus
Ativista, escritor e jornalista

Conto Canábico: em busca do Santo Bong de Afrodite

Conto Canábico: em busca do Santo Bong de Afrodite

Foram vários anos de estudo e de viagem até conseguir localizar. O Santo Bong, que segundo a lenda fora utilizado por Afrodite em uma de suas vindas para a terra, poderia proporcionar a quem o utilizasse um eterno tesão, e consequentemente, a eterna juventude. Porém, durante o avanço proibicionista no mundo, o Santo Bong se perdeu, e ficou décadas sem ser visto.

Precisei viajar até Roma, onde segundo relatos históricos, teria sido o último lugar onde Afrodite e o Santo Bong teriam sido vistos. E por ser um objeto cobiçado por maconheiros de todo o mundo, tive que manter em sigilo minha jornada em busca do Bong.

Era um local onde arqueólogos faziam escavações para procurar objetos da Roma Antiga. E em uma dessas escavações, os arqueólogos encontraram um túnel que, à princípio, dava para lugar nenhum. Eu sabia que o local onde poderia estar o Santo Bong coincidia com a área onde estava o túnel. Portanto, não tive outra opção se não me enfiar dentro da galeria escura.

Mesmo sendo milenar, o túnel preservava um forte cheiro de maconha, que ficava mais forte à medida que eu adentrava galeria à dentro. Depois de caminhar 20 minutos no escuro, me deparei com uma parede de pedra, que parecia ser o fim do túnel. Mas pelo cheiro de erva recém colhida que meu nariz estava sentindo, eu sabia que atrás da parede inviolável de pedra poderia estar o Santo Bong.

Bati, empurrei, mas nada fazia a pedra se mover. Cansado de todas as tentativas falhas, sentei e comecei a bolar um baseado. Percebi então, que haviam linhas nas paredes no túnel que lembravam muito as veias humanas. Com o baseado em mão, lembrei que a maconha é vasodilatadora, então, botei fogo no beck.

A fumaça do baseado começou a tomar conta de todo o túnel, que como num passe de mágica, começou a se dilatar. A parede de pedra que até então parecia ser inviolável, logo se tornou móvel, e com facilidade, pude empurrá-la.

Me vi dentro de uma câmara, cheia de flores de maconha e bongs de vários modelos e cores em cima de uma mesa. Deitada em uma espécie de divã, estava uma moça linda, de cabelos castanhos longos e vestido de seda rosa.

“Oh, finalmente alguém me encontrou!” disse a moça.

“Quem é você?” perguntei.

“Sou Afrodite. Estou há muito tempo dentro desta câmara protegendo o Santo Bong” respondeu.

Pela história, Afrodite usou o Santo Bong para espalhar o líbido pela terra por meio da fumaça de maconha. Entretanto, ainda há muita gente que acredita que a cannabis diminui o tesão.

“O Santo Bong está sobre a mesa. Porém, por estar no meio de vários bongs, é preciso ter um olhar sábio para encontrar o bong certo. Assim que achá-lo, você não só terá o tesão e a juventude eterna, como também irá me libertar” explicou Afrodite.

Eram vários tipo de bongs. Alguns com sistema avançado de esfriamento da fumaça, outros de um tipo de vidro que não se encontra nem nas mais modernas tabacarias. Mas havia um que me chamou a atenção por sua simplicidade. Era um bong de madeira, nada ostentação, como deve ser um acessório para fumar maconha.

“É esse de madeira!” disse para Afrodite.

“Tem certeza?” me perguntou.

“Absoluta” respondi.

“Então pode dichavar um pouco de maconha e colocá-la no bowl do bong”.

Ajeitei a erva no bong, e em seguida taquei fogo. Uma imensa quantidade de fumaça se fez dentro do bong, que em segundos foi toda para dentro do meu pulmão.

Assim que soltei a fumaça, senti um forte tesão tomando conta de meu corpo e mente. Os olhos de Afrodite me encaravam profundamente, e enquanto eu tentava me recuperar da bongada, a deusa começou a passar suas mãos em mim, até que, de surpresa, ela me beijou.

A câmara é preenchida pelo calor de nosso tesão. Enquanto tirávamos nossas roupas, eu sentia a juventude em meu sangue de uma forma que eu nunca havia sentido. E foi no divã que eu e Afrodite começamos a transar. Uma transa cósmica, cannabica, dos deuses.

Após o orgasmo transcendental, me vi em um estado de transe profundo. Perdi noção de tempo e espaço, e a única imagem que vinha em minha cabeça era de Afrodite. Mas quando abri voltei à realidade, percebi que estava sozinho dentro da câmara. Afrodite havia sumido, e o Santo Bong também.

Mas digo que é verdade o poder do Santo Bong. Depois da santa bongada, meu tesão aumentou mil vezes e minha juventude se revitalizou. E após a aventura, cheguei à conclusão de que o mundo vai mal porque ninguém transa, e se as pessoas dessem pelo menos uma bongada por dia, viveríamos em um lugar muito mais pacífico.

Ah Afrodite, saudade de você sua linda.

Por Francisco Mateus

Conto Canábico: larica forte num sábado de sol

Conto Canábico: larica forte num sábado de sol

Era um sábado de céu aberto, com um sol de lascar. Saí de Curitiba pela manhã para chegar em Florianópolis pouco antes do meio dia. E não deu outra, mal botei os pés para fora da rodoviária e a primeira coisa que fiz foi bolar um baseado. Unir a minha brisa com a brisa que sopra do mar para dentro da ilha catarinense.

Enquanto queimava o baseado, eu caminhava pela região central de Florianópolis planejando mentalmente qual seria o programa para o dia. Mas o sol chegou à posição do meio dia, e em pouco tempo ficou insuportável ficar fora de um lugar sem sombra. A língua começou a secar, e o estômago a roncar. Precisava urgentemente de uma cerveja para molhar a garganta, e de um rango para matar a larica.

Consegui a cerveja e fui me sentar em um banco na sombra de uma árvore. Comecei a pensar onde iria comer. Eis que, poucos metros à minha frente, uma forte fumaça de cheiro familiar me chamou atenção. Em meio à maresia, um grupo de cinco hippies conversava e fumava maconha tranquilamente. Logo pensei “porra, esses caras devem estar com fome também, e eles devem saber onde tem um rango do bom”.

Cheguei na maior humildade no grupo e comecei a trocar ideia. “Opa, licença. Eu sou de Curitiba e cheguei agora em Floripa. Tava fumando um e bateu uma larica, aí vi vocês sentados aqui fumando um também e pensei que vocês deveriam saber de um lugar de boa para comer um rango”. Após me explicar a situação, um dos hippies, que usava brinco de penas, sorriu para mim e acabou respondendo pelo grupo. “Pô maluco, tu veio de Curitiba hein? Ó, a gente sabe de um lugar com um feijão bom e barato. Cola aqui com a gente que depois vamos todos lá encher o bucho”.

Assim que me juntei ao grupo, um outro hippie tira da mala uma murruga. Consigo sentir o cheiro cítrico da outra extremidade da pequena roda. Ele pica a flor com a tesoura de um canivete e faz um baseado, que logo começa a passar de mão em mão, deixando todos chapados.

Ao fim do baseado, nos levantamos e começamos andar pelas ruas centrais de Florianópolis. Eu não tinha a mínima ideia para onde estava indo, mas o hippie dos brincos de penas falava que eu estava prestes a comer o melhor feijão da cidade em um local pouco conhecido pelas pessoas.

Chegamos a uma casa antiga de fechada laranja. Sem sofisticação, com mesas de madeira e toalhas de plástico. Nos ajeitamos em uma mesa grande e pedimos um feijão e cerveja. Estava todo mundo visivelmente chapado, com olhos vermelhos e movimentos lentos. Assim que a panela de feijão chegou, não deu outra, ela foi atacada imediatamente.

Panela vazia, mas a larica ainda roncava. Pedimos mais um feijão e mais uma cerveja. Assim que a garçonete levou nosso pedido para cozinha, um caminhão parou em frente ao restaurante, e dele desceram cinco indivíduos muito estranhos. Estavam todos muito elétricos, e assim que se ajeitaram em uma mesa, começaram a gritar para a garçonete: “FEIJÃO, FEIJÃO, FEIJÃO!”. A moça claramente ouviu o pedido e logo o levou para a cozinha.

Minutos depois, os cinco indivíduos começaram a gritar da mesa em que estavam para garçonete que saia da cozinha trazendo uma panela de feijão. “UH UH UH FEIJÃO! UH UH UH FEIJÃO!”. Mas ao invés de ir para a mesa deles, o feijão veio para a nossa mesa. Então, começou uma revolta no restaurante.

“Ei, que porra é essa?!” gritou um dos indivíduos. “Os caras pegaram o nosso feijão!”. Então, nossa mesa logo foi cercada pelos cinco caras, que agora mais de perto, percebi que estavam com os olhos arregalados e com as narinas vermelhas. “Ô seus maconheiros, cês estão com o nosso feijão.”. O hippie dos brincos de penas então, de forma muito calma, respondeu “bicho, calma ae, cês chegaram depois, nós pedimos o feijão antes de vocês”. Mas parece que a explicação não acalmou a situação.

“Que que você tá falando meu, você tá chapado, tá doidão! Esse feijão é nosso!”. Não houve confronto. Ainda estávamos chapados pela murruga, o que nos impossibilitava de brigar com os caras. Então, o japonês do grupo do caminhão tirou a panela do centro da nossa mesa e levou até a deles. Felicidade para os indivíduos, tristeza para os maconheiros.

Mas para a nossa felicidade, veio a garçonete trazendo uma panela de feijão. Ela viu que os indivíduos tinham pegado o nosso feijão, então a panela que era para ser deles, ela trouxe para a nossa mesa. A tristeza que tomava conta dos hippies, logo foi substituída pela alegria de ver a panela cheia de feijão na mesa.

Comemos o feijão na maior felicidade, como se nada tivesse acontecido. Depois de algum tempo os indivíduos, gritando e batendo os pés, foram embora no caminhão. Confesso que fiquei com uma certa raiva daqueles caras, mas sabia que era irrelevante cultivar um sentimento negativo por pessoas que eu nunca mais veria na vida.

Meses mais tarde vi na televisão que um avião havia caído com cinco caras dentro. Vi a foto dos envolvidos no acidente e juro que achei que eram os caras do feijão. Mas sou maconheiro, e confesso que às vezes não sei a diferenciar a memória do delírio.

Por Francisco Mateus

Conto Canábico: um encontro com a Santa Maria Joana

Conto Canábico: um encontro com a Santa Maria Joana

Foi logo após o trampo. Saí da redação do jornal onde trabalho naquele momento da tarde quando o céu começa a escurecer e as estrelas se revelam. Antes de ir ao bar tomar uma cerveja, parei em uma pequena praça, com um banco e um busto de alguma figura histórica importante, e lá me acomodei para fumar um baseado.

Estava tendo uma pira deliciosa, apenas observando a chegada da noite e sentindo a brisa curitibana. Após queimar todo o baseado, joguei a ponta que restou fora. Assim que a ponta caiu na grama, uma forte luz surgiu bem em minha frente, como se uma granada de flash tivesse explodido.

“Caralho maluco, que porra é essa!?” gritei ao se quase ser cegado pela luz. Fiquei imóvel, e assim que abri os olhos, fui surpreendido por uma figura feminina, que me encarava com uma ternura até então inédita para mim.

Estava de boca aberta. “Oi Francisco.” disse a mulher. Me espantei com o fato da figura saber o meu nome. “Farei o que você quiser, desde que minha memória não seja apagada, por favor” disse à ela. “Do que você está falando?” respondeu a mulher sem entender o que eu estava dizendo. “Você é uma alienígena! Você veio me buscar para fazer experimentos dentro da sua nave espacial!”.

“Se acalme, vim até você porque tenho uma mensagem”. Me decepcionei porque de certa forma eu queria dar um rolê de nave espacial; mas decidi ouvir o que a figura tinha a me dizer. “Eu sou a Santa Maria Joana, fui mandada por Deus para vir à terra avisar que a raça humana corre perigo se continuar proibindo o uso da cannabis”.

O papo ficou louco. “Por que eu nunca ouvi falar de você? Nenhum padre chegou sequer a falar de você, nem mesmo o papa.”. Na minha cabeça, maconha era até então algo que a religião abominava. “Quem não fala de mim são os homens. No céu, a Cannabis é uma planta sagrada, e  se os homens continuarem proibindo seu uso, a raça humana poderá deixar de existir”. Fiquei assustado com tal revelação.

“Como a raça humana deixará de existir com a proibição?” perguntei a ela. “Isso não vem ao caso. O que eu peço a você, é que acabe com a ideia errônea que as pessoas têm sobre a maconha.”. “E como farei isso?”. “ Você encontrará duas pessoas que te darão as ferramentas necessárias para espalhar o culto à cannabis. Use seu dom com as palavras.”.

Estava quase convencido com tudo aquilo que a Santa me falou, mas faltava uma prova de que aquele papo não era zoeira. “Ok, mas como eu posso saber que tudo isso que você está falando é verdade e que você realmente é uma Santa?”. A mulher se agachou, pegou a ponta que eu havia jogado fora e apertou ela com as duas mãos. Assim que elas se abriram, o baseado estava inteiro novamente.” Uou, isso sim é um verdadeiro milagre!”.

“Você sabe o que fazer daqui para frente. Boa Sorte.”. E em um piscar de olhos, a Santa sumiu. Fiquei paralisado, tentando entender tudo aquilo que tinha acontecido. Pode ser que de fato tudo aquilo que eu vivi tenha sido verdade, mas também poderia ter sido uma brisa forte de maconha. Deixei a praça e fui ao bar beber.

Na semana seguinte, fui ao Largo da Ordem acompanhar o ensaio da Batucannabis. Lá havia dois rapazes distribuindo exemplares da revista Maconha Brasil. Logo comecei a trocar ideia com os malucos. Falei que era jornalista e fumava maconha. Então, veio o convite. “Ei, você não quer escrever para o nosso blog?” me perguntou um dos rapazes que usava dreadlocks e toca. “Pô, eu adoraria. Qual é o nome do blog de vocês?”. “Se chama DaBoa Brasil. Dê uma olhada lá!”.

Fui para casa com a ideia na cabeça. Alguma coisa me dizia que seria uma boa escrever para os caras. E assim, nasceu a coluna de Francisco Mateus no blog DaBoa Brasil.

 

Conto Canábico: sobre quando Carlota Joaquina ouviu a palavra de Gilberto Gil

Conto Canábico: sobre quando Carlota Joaquina ouviu a palavra de Gilberto Gil

Cá estava eu andando pelo centro de Curitiba fumando um baseado, quando ouço alguém falando “ei rapaz, venha a cá”. Me virei e vi uma mulher de roupa extravagante e uma peruca ridícula na cabeça tomando chá em um café à beira da rua.

“Estás a fumar um cigarro de índio?” me perguntou a senhora. Pela forma séria que ela chamou minha atenção, logo pensei que seria repreendido pelo cheiro do meu prensado. “É tabaco, minha senhora”, respondi a fim de despistá-la e voltar a seguir meu caminho. “Ora, não seja tolo! Só quero dar um tapa no cigarro”.

Achei muito estranho a forma como a senhora me abordou. Mas ignorei qualquer tipo de represália que eu poderia vir a sofrer e caminhei até a mulher. “Sente-se, me faça companhia”. Logo puxei uma cadeira e me sentei à mesa com a senhora. Dei mais uma bola e passei o baseado para a madame. Ela puxou, prendeu, e soltou a fumaça. “Meio fraquinho, não?”. Argumentei que era um prensado, cuja origem é obscura, portanto de baixa qualidade sim.

Achei um tanto quanto arrogante a forma como a mulher falou do meu baseado. Estamos no Brasil, século XXI, fumar coisa boa só plantando. Mas no fim ela agradeceu as bolas que eu passei para ela. “Estou com cólica menstrual, e a cannabis é o único remédio para aliviar as dores”.

Com a leseira no corpo e a boca seca, aproveitei que estava em um café e pedi uma água. “Qual o  seu nome, meu jovem?” ela perguntou. Foi aí que eu me liguei que não nos apresentamos. Eu disse meu nome, e ela em seguida falou o dela. “Me chamo Carlota Joaquina”. Nome estranho para uma senhora estranha com sotaque forte. “Prazer”, respondi.

Perguntei se ela era de Curitiba. Ela disse que não, e que na verdade era uma portuguesa que veio ao Brasil com o marido para fugir de um baixinho maníaco francês que estava tocando o terror na Europa. “Coisa louca”, falei. “Aqui no Brasil tá acontecendo a mesma coisa, o problema é que o cara era até então apoiado pela classe-média”.

Logo o assuntou voltou para a maconha. Disse que aqui no Brasil não se pode plantar um pé de maconha que já vem polícia encher o saco. A senhora então disse que em Portugal a maconha é usada para tudo, mas que o que fode com todo o esquema são os negros. “Que senhorinha filha da puta”, pensei.

Papo vai e papo vem, percebo que na verdade a tal Carlota Joaquina é uma dondoca preconceituosa que não sabe fumar maconha. “Você já ouviu a palavra de Gilberto Gil?” perguntei a ela. “Nunca ouvi falar”. Como sou dessas pessoas que acredita ser possível mudar os outros com gestos simples, convidei a madame para ir até meu apartamento para ouvir a palavra do ex-ministro da cultura e fumar mais um baseado.

Chegando em minha residência, coloco na vitrola o disco “Refazenda” e bolo um baseado. Não demora muito para a senhora entrar no clima do disco e da maconha. “O que é esse som que eu nunca ouvi antes?” me pergunta. “Isso é Gilberto Gil. Música negra da melhor qualidade”. “Isso é música de negro?” se surpreende a mulher. Em pouco tempo, Carlota entra num transe profundo com as palavras de Gil. “Nos meus retiros espirituais, descubro certas coisas tão banais/ Como ter problemas, ser o mesmo que não”.

O disco acaba, e do baseado, só resta a ponta. “Ó, que experiência divina!” fala para mim a senhora ainda tentando sair do transe. “Pois é, Gil ensina que não há motivos para odiar o próximo. Classe e cor são apenas detalhes superficiais. É preciso amar as pessoas por suas espiritualidades”. “Agora concordo plenamente” ela responde com um pouco mais de consciência.

Enfim nos despedimos. Permaneço em meu apartamento e Carlota segue seu rumo pelas ruas de Curitiba. Sempre me bate uma satisfação quando consigo ensinar as pessoas a ver as coisas de uma outra forma por meio da música e da maconha.

Semana passada eu estava andando pela Rua São Francisco quando alguém chama meu nome. “Ei Chico!”. Quando viro para trás, vejo Carlota sentada em um círculo com alguns hippies artesãos. Quase que não a reconheço, por ter trocado aquela peruca ridícula por dreadlocks.

“O Carlota, quase não te reconheci!” disse a ela. “Chico, eu tenho muito a te agradecer. Depois do Gil, percebi que nossa missão aqui na terra e alcançar um nível espiritual elevado”. “Fico feliz em ouvir isso. Mas se me dá licença, preciso seguir meu caminho”. “Não quer levar uma miçanga?” ela me pergunta. “Hoje não, muito obrigado”, respondo. Assim que me afasto consigo ouvir ela falando “burguês filho de uma puta”.

Por Francisco Mateus

 

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